MANHÃ DE CARNAVAL
O
cantar de um galo empoleirado em uma árvore no terreiro anuncia o nascer do
sol. É uma sexta-feira chegando. Mas não uma sexta-feira como as outras, é a
sexta-feira que antecede o sábado de Zé Pereira,
personagem carnavalesco que anuncia o início dos festejos de momo em
Pernambuco.
O
lugarejo, Riacho Doce, conta com algumas dezenas de casas simples,
cujos residentes são agricultores, cortadores
de cana-de-açúcar ou plantadores de mandioca, que ao final da semana, embalados
pelas cantigas das mulheres ao caititu -
peça para moer as raízes -, fazem a farinhada da mandioca e aos sábados vão
para a feira de Nazaré da Mata, em Pernambuco, vender a farinha torrada.
Seu
Zé Bento, como é conhecido, é o pai
de Ana Bela, filha mais nova desse homem curtido pelo sol, de cor sarará ou pele ruiva quase avermelhada, como dizem na roça. Essa jovem morena de 16 anos, olhos
esverdeados herdados do pai, pois a mãe é de pele morena de olhos pretos como
duas jabuticaba, como se costuma falar, corpo bonito e esbelto, capaz de tirar
suspiros dos jovens mais pacatos do lugar, já se aprontava para ir à casa de farinha, para ajudar a assar os
beijus, na farinhada.
É uma manhã diferente
para aquela moça de tez bronzeada pelo sol causticante do nordeste brasileiro,
ainda estudando o primário, pois era véspera de Zé Pereira, e Belinha, como é chamada,
ansiava pela chegada do carnaval.
Seu
Zé Bento, apesar de homem rude, tem a veia do poeta, sempre fez versos de
improviso e isso fez com que fosse convidado para ser o líder e mestre do maracatu rural da localidade,
o Sol Brilhante, já de muitos anos, e que
participa na cidade de Nazaré, sempre na segunda-feira de carnaval, da apresentação dos grupos de
maracatus, inclusive das cidades de Olinda e Recife-PE.
O maracatu rural ou
de baque solto, tem um formato bem
característico da zona da mata de Pernambuco, pois ali ele nasceu. Uma mistura
de cambinda, caboclinhos, cavalo marinho
do próprio maracatu nação, que segundo historiadores tem raízes africanas, e outros folguedos próprios da região.
Belinha tinha todo um
motivo para estar com o coração quase aos saltos com a chegada do carnaval. Foi
eleita pelos participantes do maracatu para ser a porta-bandeira, algo cobiçado
por todas as moças e mesmo pelas mulheres mais idosas que fazem parte do
maracatu. Só 16 anos, mas um 1,65m, coisa pouco comum por ali, a tornou a mais
forte concorrente de dona Jandira, que não mais agüentava toda aquela roupa que
vestia por ocasião dos festejos de momo e ainda fazer as evoluções com o
estandarte.
Seu
Zé Bento, com muito orgulho, dizia a todo mundo que tinha dois filhos que eram
caboclos de lança, os personagens mais importantes do maracatu
rural. As suas lanças são de madeira pontiagudas, envolvidas em fitas de tecido
colorido, cabelos supostos de finas tiras de papel brilhante, de colorido
forte, o surrão, armação de madeira onde se localizam os chocalhos, e adereços
dos mais variados, chegam a pesar 25 quilos. Era realmente uma glória: ele,
líder do grupo e puxador das loas, a filha porta-bandeira ou estandarte e dois
filhos caboclos de lança. É o maracatu, sem dúvidas, como festejo, a coisa mais
importante daquele vila de gente humilde, de pessoas sinceras e solidárias.
É
sábado de Zé Pereira. De manhãzinha, seu Zé Bento nem precisou acordar Belinha.
Ali estava ela: cabelo grande trançado para trás; brincos de argolas comprados
na feira; vestido estampado apertado em cima, realçando o busto e saia rodada,
bem larga, ao estilo das baianas, era uma moça bonita, toda arrumada para ir à
feira com seu pai e ajudar a vender a farinha.
Já
na rua, como é costume o dizer daquela gente,
Belinha não se cansava de olhar os enfeites de bandeirolas de papel de seda colorido e de plástico, grandes
máscaras lembrando os papangus, tão comuns no carnaval nordestino, e grandes arcos com inscrições sobre o
carnaval nas entradas e saídas das avenidas, a parecer portas se abrindo à
espera dos visitantes e foliões.
Belinha
não conseguia trabalhar. Vez por outra uma orquestra de frevo arrancava gritos
de euforia dos feirantes e o espocar de fogos, transformava o ambiente da feira
em grande arraial carnavalesco. Ela só não conseguia
ouvir o batuque de maracatus. É que eles só se apresentam, em primeira mão na
segunda-feira de carnaval, e só depois dessa apresentação ficam liberados. Seu
Zé Bento compreendendo o enlevo da menina, balançava negativamente a cabeça
dizia:
-menina sai do mundo
da lua e vem me ajudar! Esse povo novo anda com a cabeça ao vento!
À
noite, já em casa, Belinha provou a roupa nova que sua mãe passara o ano
inteiro costurando, juntamente com as de seus irmãos e a de seu pai pois não
podiam pagar costureira, coisa até rara naquelas bandas. Foi para o terreiro,
ensaiou alguns passos com seus irmãos a lhe rodear, fazendo com que seu pai ficasse
de olhos brilhantes, como a aprovar aquelas evoluções que fazia, rápidas,
graciosas e precisas.
O
maracatu rural tem um ritmo frenético, eletrizante, o que o diferencia do
maracatu nação, que tem ritmo mais dançante, mais cadenciado. Os participantes
do maracatu rural precisam estar bem descansados para suportar aquela dança e
os malabarismos que ensejam uma luta, quase num êxtase de glória, durante as
apresentações na praça principal de Nazaré da Mata. Assim, no domingo de
carnaval, nenhum participante do maracatu vai aos folguedos carnavalescos, nem
toma uma pingazinha para não ficar de perna mole na segunda-feira. É uma ordem
do líder: se beber cachaça no domingo, não desfila na segunda.
Dormir, nem pensar! A noite do sábado
parecia não ter fim para Belinha. Na
cama, a olhar o teto, revirava para um lado e para o outro, sem conseguir
conciliar o sono nem tirar do pensamento
o vestido, as evoluções que deveria fazer e a bandeira, o símbolo de seu maracatu.
O domingo amanheceu calmo no lugarejo. Afora
uns galos cantando, só o cacarejar das
galinhas no terreiro, onde a Belinha já estava a sacudir o milho e um pouco de
farelo de algodão, marcavam presença naquela manhã, como sempre, ensolarada.
Lá
por volta das dez horas, chegaram os
batuqueiros do Sol Brilhante: os homens do ganzá, do surdo, do tarol, do
gonguê, do zabumba, do trompete e também o homem do trombone. O maracatu rural
é também conhecido como maracatu de orquestra, pois tem instrumentos de metal que
se incorporam ao grupo de percussão, sendo mais uma diferença para o maracatu
nação. E aí as conversas correram soltas, cada um falando de seu instrumento e
mostrando o “trato” que foi dado para ficar bonito e impressionar os turistas
que vinham ver as apresentações.
Como
todos bons brasileiros, acabaram por
fazer uma pequena roda no terreiro, que culminou em uma espécie de ensaio
final, com todo mundo dando vivas e batendo palmas. Só restava agora aguardar a
apoteose. Belinha era só expectativa, recheada por um friozinho no estômago
ante a responsabilidade de conduzir, pela primeira vez o estandarte do maracatu
Sol Brilhante, daquele pedacinho de chão tão amado por seus habitantes.
É
chegada a hora. Ao longe a buzina de um ônibus soou forte, anunciando que o
transporte estava chegando e estacionou em frente à casa de seu Zé Bento. Foram
abertos os porta-malas que ficam abaixo da linha dos assentos, para abrigar os
instrumentos e as indumentárias que seriam vestidas na chegada à cidade.
Seu Zé Bento, homem precavido,
havia mandado seu filho mais velho acordar, logo cedinho, todos os componentes
do maracatu. E ali, no alpendre da casa,
começou a chamar, um por um e a verificar se estavam com suas vestes e instrumentos
em ordem, como ele sempre exigia. Chamou dona Iracema, que se veste de baiana
já há muito no maracatu, e procurou
saber se a Calunga que ela sempre carrega nas apresentações, uma boneca bem
vestida, que segundo as tradições dos maracatuzeiros, faz a ligação entre o
terreno e o divino, estava pronta para se apresentar. Estavam todos ali: os
caboclos de pena, os lanceiros, os batuqueiros, as baianas e a
porta-estandarte, sua filha Belinha, uma pontinha de orgulho aflorou em seus
lábios quando chamou pela filha. Estava, realmente, bonita: um vestido amarelo
de saia larga, decote bastante generoso, enfim, uma figura que todos iriam
aplaudir.
Já
todos prontos, começaram a se deslocar em passo de caminhada, para a praça em
frente à Catedral, local onde uma multidão aguardava, com grande expectativa, a
apresentação dos maracatus.
O
sol já alto, fazia jus ao nome da maracatu, Sol Brilhante, já pronto para se
apresentar. Pelos alto-falantes, eram informados sobre os maracatus que se apresentavam. Todos
estavam tensos. Belinha, corpo trêmulo pela emoção, procurava manter-se calma e
aí, o esperado: “agora estará se apresentando o maracatu de baque solto, o Sol
Brilhante”, era o chamado oficial do locutor da grande festa.
O mestre Zé Bento não se alterou, levou o
apito à boca, fez os silvos combinados e a bateria explodiu em ritmo capaz de estremecer as entranhas de quem estava
próximo. Os caboclos de lanças começaram
a evoluir com as lanças e a se cruzarem em um duelo simulado, com isto
afastavam as pessoas que estavam muito próximas. Novo apito. Calam os
instrumentos e o mestre puxa a primeira loa, exortando os brincantes a se
animarem e a dançarem com as forças que podiam. Os caboclos de pena faziam
evoluções, juntamente com as baianas, em torno da porta-bandeira, e Belinha começou a rodopiar em evoluções de
reverência ao público e aos brincantes do maracatu, em passos majestosos,
dignos da mais antiga porta-bandeira que por ali já passara. Estava exuberante.
Aplausos da multidão que ensaia acompanhar o ritmo alucinante da bateria.
Mestre Zé Bento está tomado pela emoção. Nunca vira seu grupo tão aplaudido
como naquela hora. Fora o último a se apresentar. Finalmente, chegou a frente
ao palanque, saudou as autoridades e o júri com uma bonita loa respondida pelo
coro feminino e encerrou a apresentação.
Todos se recolheram a um canto
pré-determinado e ficaram aguardando o anúncio do maracatu vencedor. Eram três
prêmios: vencedor geral, conjunto de melhores versos e batuque e a melhor
porta-bandeira.
O
vencedor geral foi o maracatu Folguedos de Carnaval. Melhor conjunto de batuque
e loas, maracatu Piaba de Ouro. Melhor porta-bandeira e o locutor acaba de
anunciar o nome do maracatu Sol Brilhante da vila de Riacho Doce. Gritaria
geral entre os maracatuzeiros. Todos abraçaram Belinha e começaram a sacudi-la
para cima gritando seu nome. Quase o mestre Zé Bento tem um “troço”. Abraçou a
filha com os olhos cheios d’água, de emoção e alegria infinita. A sua filha era
a melhor porta-bandeira daquela manhã de segunda-feira carnavalesca, talvez
nunca imaginada pelas dificuldades financeiras do seu grupo.
E
na volta Belinha, que acalentou um sonho desde a infância, hoje realizado com o
anúncio da conquista de melhor porta-bandeira do encontro de maracatus de
Nazaré da Mata, sonho embalado até os momentos finais da apoteose naquela
praça, encontrava-se absorta, ecoando em sua mente, o som dos taróis, zabumbas,
ganzás e outros, como os mais lindos sons dos seus sonhos naquela manhã de
carnaval.
Obs.: Todos os personagens e nomes do conto
são fictícios.
(05/02/2000).
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