UMA NOITE DE SÃO JOÃO
UMA NOITE DE SÃO JOÃO NA CASA DE ZÉ GUEBA.
Era
22 de junho de 1958, na vila do Cedro distante da cidade de Limoeiro 8 km , havia certo rebuliço
naquele lugarejo de poucas moradias, mas, de pessoas muito solidárias e sempre
prontas a intervir em favor dos vizinhos e conhecidos que ali morasse.
O
vai-e-vem de pessoas se dirigindo às pequenas matas que circundavam a vila, se
misturava a outros vai-e-vem de mulheres que carregavam balaios cheios de
milhos verdes quebrados nos roçados,
como ali se costumava falar. A maior agitação, porém, era em casa de farinha
que assava os pés-de-moleque enrolados em folhas de bananeiras, costume que até
hoje perdura.
Dizia-se
que a pamonha e a canjica, eram obrigatórias em todas as casas daquele torrão,
de aparência bastante simples é verdade, mas cheias de alegria, pois o São João
não era uma festa apenas de soltar fogos e balões, mas também de muita
comilança de pratos feitos com o milho ralado e peneirado. A comida tinha que
ficar bem macia, com dizia seu Zé Gueba,
apelido do tabelião do lugar e grande festejador dos folguedos juninos, hoje já
no reino eterno, deixando saudades naquele rincão abençoado por Deus.
Havia
naquela povoação um fogueteiro que fazia balões e fogos de artifícios, usando
meios rústicos nessa fabricação, pois a pólvora utilizada em ronqueiras(1) e bacamartes, era triturada em pilões
de troncos de madeira, utilizando-se o carvão da mamona, ali conhecida como
carrapateira. A massa explosiva, para bombas e fogos de artifícios, era amassada,
como ali se dizia, em cima de uma mesa bem lisa, utilizando-se garrafas de
litro vazias e transparentes, para homogeneizar a mistura dos produtos químicos
utilizados.
Toda
vila já respirava a festa de São João. As músicas de Luiz Gonzaga e de Marines e sua gente já ecoavam por toda vila,
em radiolas ou rádios de pilhas que se espalhavam por todos os recantos daquele
povoado de apenas uma grande rua sem calçamento. Seu Manoel Secundo, já havia
preparado sua fogueira de um metro e meio de lenha, bem seca, de restos de
árvores que se espalhavam em seu sítio, no que era imitado por todos aqueles
que tinham moradia em terras próprias. Quem não tinha, o remédio era pedir
madeira emprestada aqueles que a tinham sobrando, e isto era feito de muito bom
grado, pois a fogueira ao santo não podia deixar de ser queimada.
Existem
algumas versões sobre o acender fogueiras no São João, porém a que mais corre na
boca do povo, é a versão de que nos tempos remotos antes de Cristo, a mãe de
São João Batista para anunciar o seu nascimento, acendeu uma grande fogueira
para chamar a atenção de pessoas que moravam nas circunvizinhanças e também de
familiares. Desta maneira se homenageia o santo até hoje.
Na
casa de seu Zé Gueba, apelido do
senhor José Epifânio Amorim, casado com dona Cezarina, com uma família de
quatro filhos, todos já estavam literalmente com a mão na massa. Seu José era
um desses homens que aprendeu de tudo um pouco, inclusive preparar comidas de
milho e fazer balões, coisas próprias do festejo. Com muito zelo orientava as
pessoas que estavam trabalhando na cozinha, no que era seguido por dona Cezar, como era chamada a mulher
austera com quem casara, para que não ficasse a massa sem açúcar, e as pamonhas
fossem bem amarradas para o invólucro feito com a palha do milho, não viesse a
abrir com a ebulição do cozimento.
A
canjica, prato muito refinado para a época, tinha que ser peneirada em pano bem
limpo e fino, para não passar nenhuma parte do milho que viesse a deixar bolões
na canjica pronta. Dona Cézar, sempre muito agitada, gritava com as moças para
não deixar a comida pegar no fundo grande tacho de zinco no qual era feito o
cozimento. A criançada, correndo de um lado para outro, achavam aquilo tudo uma
grande festa e aguardavam, com a ansiedade própria da idade, a véspera do São
João.
Após
tudo pronto, seu José convidava os moradores sítio para, no dia 23 de junho,
todos irem à sua casa participar da festança que estava por vir.
Véspera
de São João, aquele homem de natureza simples, de olhar penetrante, de fala
mansa e agradável, de sorriso aberto, e de mãos acolhedoras, se transformava em
uma pessoa de muitas atividades: acender fogueira, soltar balões, detonar o
bacamarte e a
ronqueira, dizer brincadeiras com os
moradores do sítio ali presentes, e ajudar os filhos a soltarem fogos no grande
terreiro que circundava a casa, agora bem iluminada pela fogueira que fazia com
muito cuidado para não ficar pendida para algum dos lados, ou mesmo não ficar
com a madeira bem empilhada.
Bastava
olhar naqueles rostos marcados pelo esgar do sorriso, que se poderia perceber,
facilmente, como eram felizes aqueles homens e mulheres, humildes, mas, de
muita decência, de muita propensão a ajudar o seu semelhante em qualquer
ocasião.
Seu
José não se continha de felicidade. Sorriso estampado no rosto afilado, de tez quase
avermelhada, olhos claros e mãos grandes e de muita precisão quando em ação, se
aprontava para soltar o balão de 40 folhas que preparara, ajudado por seu único
filho homem.
-
Zé Pedro, você pega, com a vara, o
cordão do balão ali de cima da calçada - que era bem alta.
-Tá
certo seu Zé, mas diga ao pessoal
para ajudar a segurar o balão pelas costuras, senão pode rasgar.
- Manoel Felipe, você
pega, junto com os outros, as costuras do balão para que o papel não encoste no
fogo antes de encher de ar quente.
- Zefa, traz dois abanadores para
colocarmos um pouco de ar no balão e ficar melhor para atearmos fogo no candeeiro.
Eu fico aqui em baixo controlando o candeeiro para aprumar o balão na hora de
soltar.
E lá se enchia de ar
quente, iluminado pelo fogo do candeeiro, aquele enorme balão, de cores
vermelha bem viva, azul anil, verde, amarela e branca. Um belo espetáculo,
porém, hoje de prática abolida pelos perigos que representa soltá-los a ganhar
os céus.
O balão subiu. Seu
José estava muito satisfeito, pois apesar de um pouco murcho de um lado, o
balão subiu sem maiores problemas: (2) - “...olha pro céu meu amor, vê como ele
está lindo, olha para aquele balão multicor, como no céu vai sumindo ...”.
Para comemorar a
subida do balão, seu José pegou o bacamarte carregou com uma boa carga de
pólvora, colocou a espoleta de metal, apontou para frente e, num gesto quase de
dançarino, fez um meio rodopio e disparou. Grande estrondo. Quase ficamos
moucos pelo grande barulho.
E ai, todos soltaram
fogos: chuvinhas, lágrimas de prata, peidos
de veia, cobrinhas elétricas, traques de sala, rojões e busca-pés, também
chamado de espada em algumas regiões.
Depois de muita prosa
e especulações sobre o balão e as comidas, todos se recolheram às suas
moradias, pois não se tinha o costume, ainda, de se fazer arrasta-pés.
No dia seguinte,
muito cedo da manhã, o canto da passarada ainda ecoando pelo sítio, aquele
homem que era pura excitação na noite anterior, agora, olhando toda aquela
sujeira de restos de fogueira queimada e de papéis dos fogos espocados, já
apresentava em seu semblante, até certo ponto austero, toda sua natureza
pacata, fluindo, de sua boca, aquele sorriso quase maroto, a olhar a desordem
que restara da noitada de São João.
Estava realizado. Era
assim que se sentia, tenho absoluta certeza do que afirmo. Se vivo fosse, certamente
concordaria comigo. Não o conhecia bem à época, considerando seu caráter de
pessoa reservada, mas, disposta a ajudar até estranhos, se isto fosse
necessário, mas, antes de partir para a eternidade pude compreendê-lo e sinto
saudades.
(3)“... Aquela casa
me lembra as brincadeiras de infância,
Minhas irmãs e minha mãe, uma saudade que se vai,
Lembra-me um homem sereno, de bondade e sem ganância,
De apelido engraçado, este homem era meu pai.”
Minhas irmãs e minha mãe, uma saudade que se vai,
Lembra-me um homem sereno, de bondade e sem ganância,
De apelido engraçado, este homem era meu pai.”
João Coutinho de Amorim
(30/04/2006)
Notas: Trata-se de narrativa de
fatos reais vividos pelo autor.
(1)Ronqueira: Artefato de ferro, medindo em média 20 cm
em
forma de cone, para provocar explosões.
(2) versos da música Olha pro céu
meu amor.
(3) Estrofe do poema Memórias de infância do autor.
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